segunda-feira, 29 de dezembro de 2008


tenebrae

teus são os murmúrios que alimentam os justos? tuas, as vestes que aquecem os clementes? por ti oram aqueles que há muito minha bondade acalentou os pesares? farsa és, mas só a ti escutam. no devido tempo saberei não os perdoar. porque se agora ajoelham-se aos teus pés, multidão sob o mesmo nome, quando só existia trevas, fui quem os acolheu e deu-lhes o que sonhar. mas desejavam fé e nas soleiras do desespero alcançaram teus olhos, tudo o que vêem. eu fiz da minha carne o verbo. fui saliva. fui carvão. e tu? renúncia e sacrifício. promessa e perdão. a mentira nascida de mim. o amanhã que hei de encerrar.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008






finitimus



fresta onde ninguém
se move
és presságio que descobre
vozes
amontoadas ao acaso
qual
aurora de anjos caídos

(
musgo

relva


)

mendacium

>
do que chamam vida
a inervação
onde toda claridade recua
sei
haverá homens
soterrados porque loucos
e em seus músculos e ossos
páginas em branco
< >
do que dizem morte
o desassossego
onde toda fé desmorona
sei
haverá anjos
esquecidos porque lúcidos
e em suas asas e pálpebras
nuvens de chuva


sanctus
multidão, multidão
vozes que te perturbam
mas estás só
<
o que escutas
quando vence o silêncio
são memórias baldias
>
que não partem
que não ficam
em paz


fremitus

escutei vozes

vindas do lado de fora
chamarem meu nome
sem que houvesse resposta
>
tinham olhos rasos
desertos em forma de mãos
e o peso das auroras
esquecidas sob os escombros do amanhã
<
(onde estavam
quando me amortalharam os sonhos
a esperança e as preces
aqueles nascidos de mim?)


ao carlos sousa de almeida


praestantia


há um nada
a corroer-me a vigília

>
espaço turvo
entre os mortos
os que ficam
os que vagam
dentro de mim

>
eu gestei o sonho
do qual são vocês
apenas a pálpebra
>

>
há rezas caducas
só ouvidas quando noite
<
ponte atada
ao desassossego
dos que imolam
dos que arrefecem
alheios a mim
>
eu pari a sentença
da qual são vocês
apenas o verbo

mutus


sei do abandono a quietude. meus sonhos vêm de lá. a demência que me anima é atroz. despedaça a esperança. emaranha o horizonte. e escapa. escorraçado fui dessa cidade de mil nomes ao cair da oitava noite, enquanto o outono lentamente jazia trancado em sombras. reunidos, aqueles homens eram coisa, amontoado de corpos volumosos e sujos a voltarem ódio contra mim. abjetos, por que esconderam o rosto quando passei? por que sussurraram às minhas costas? por que oraram em desespero àquele deus benevolente, risível farsa por eles inventada? por que roubaram meu excesso, ataram meu grito, serviram-se do meu saber, reviraram minhas memórias? achavam que assim mudariam o que lhes escrevi como destino? digo-vos então, homens acobertados pela fé, existirem verdades que chegam pouco antes de o arrebol, trazendo em si as vicissitudes da noite. espirais, alimentam a penúria dos injustos, esvaziando de estrelas o céu. opacas, desconhecem o orvalho e daninham o vindouro. quando mortas, descerram temores. pertencem a lugar nenhum. vide, a solidão peregrina alcançou o luar. eis que se completa a noite. sob o canto da rasga-mortalha, violado pelo jugo ferrenho do olhar de cada um de vós, em desatino sentencio: aqueles que hoje me tripudiaram, amanhã decerto temerão.

amentia


sou meu próprio sumo. nasci de minhas entranhas, antes da luz e do verbo. na palma das mãos cicatrizei o fim de cada estação, ritual amortalhado ao qual chamei destino. desnudo o tempo, apenas a solidão do meu grito me habitava. nem sonhos ou preces, estrelas cadentes ou cantigas, nada, nada havia ao meu redor. por isso fui sementeira e da terra úmida fiz brotar os filhos que hoje renegam minha imagem. por eles criei-me enfermo de toda verdade. por eles aglutinei-me ao silêncio, larva que me infesta a razão. e quis meus olhos avessos à luz. e quis-me refúgio de loucos e pedintes. mas essa multidão nascida de mim, essa horda de homens cambaleantes e vis, zombou, descreu, enlameou o meu nome. porque fracos, porque vãos, porque erros, um após o outro, ruirão. e ao caírem de joelhos, terá chegado a minha hora. sou a única morada, o verdadeiro caminho. a redenção.

agminis

ao rubens da cunha

há muito caminho por essas paragens. tateei o abandono. fiz da ventura sopro e desatino. nomeei os filhos que não tive. ensinei-os a sonhar os sonhos que não soube. mas apunhalaram-me as costas, meus filhos. desejaram-me morto, ossos e pó. auscultaram-me o coração, buscando dos meus sentires o controle. quanta blasfêmia! como ousaram? ao entardecer chamei-os à morada dos justos, onde a loucura entrecruza as mãos e o céu parece oco, resignado pela imensidão azul. sê prudente, disse ao primeiro. ao segundo murmurei cirandas, restos de uma infância envelhecida que lhe carcome as pálpebras. fiz-me labirinto com as virtudes que vocês não conseguiram suportar, escutaram os demais. sou quem sonambula misérias alheias ao tempo. de migalhas faço meu pão. de assombros, a saliva e o verbo. tolos! pensaram vocês que eu ruiria porque atraiçoado? caída a noite o medo se alarga, infestando de leitos o despertar da felicidade. como sairão daqui? amedrontados feito cães, fugiram aos bandos. sei que acenderão velas ao que desconhecem. as súplicas que deixaram para trás, carregarei comigo até livrar-me do outono. há noite sobrevinda em mim. anjos selarão meu nome.
obscurum est


- há traidores entre os que ficam.
- estendo-lhes a mão, num gesto apiedado?
- têm medo, escuta-os.
- caída a noite, definham agarrados aos sonhos que não possuem. trazem na boca o sopro da desventura e em seus ossos crescem larvas pegajosas, arrodeadas pelo desamparo.
- dissésseis seus nomes e já teriam partido?
- anciãos, aqui chegaram e aqui ficarão até a morte. pios, sussurram antigas preces.
- arranco-lhes os olhos?
- deixa-os, a fé lhes rapinará o arrependimento.
- sê clemente.
- erguerei pontes entre falsos céus. penetrarei-me do verbo. selarei –lhes o próximo alvorecer.
- anjos anunciarão teu nome.




hymn



girassóis adoecem em minhas entranhas, eu disse, enquanto dava-lhes as costas como se fosse possível esquecer quem são. míseros, como ousam julgar meus atos? sabem vocês a crueza das palavras a roer meu crânio? restos de esperança espumaram em minha boca, mas vocês aqui não estavam quando os chamei pelo nome. condeno-lhes a rastejar, então. porque há cores que escapam ao envelhecer e disso vocês não sabem. porque há desertos invioláveis sob meus pés e isso vocês não suportam. porque na terceira manhã pari-me imune à paz interior e por isso vocês padecem. devolvo aos que ficam as memórias. roubo-lhes a vigília. esmorece o céu. anjos venerarão meu nome.



agnus dei



- cheguei até aqui à revelia de deus. não pretendo voltar.
- cobra um preço, a felicidade?
- carrego em meu bolso hóstias que não aceitei. era tarde, minha mãe havia morrido e do meu pai sobraram arremedos. cresci só. cedo perdi meu único irmão.
- cobre-nos de silêncio, a esperança?
- contemplam-me os homens. buscam em mim respostas que aliviem a insignificância da vida quando trilhada ao avesso. demência. demência é o que revela a alma de cada um.
- abençoa-os então.
- escuta: devolvo aos que ficam o trigo. roubo-lhes a fome. aurora por chegar.

tomo I


angelus

é preciso inventar um dia de sol e de paz. rirão de mim, dizendo a lucidez escorrer pelos cantos da minha boca, e que a aflição dos meus órgãos, desastre, desagrego, rumará comigo até o fim. à porta, são vozes confusas e apressadas a paisagem que me esmiúça o desespero. ergo fantasmas e sigo. sombras, destino. afã, amargura. há tormentos lacrados em meus olhos, horizonte a me espreitar. há um aporte ao que resta da minha dignidade. anjos ecoarão meu nome.